... Em sentimentos que envolvem o universo feminino, pois “Não se nasce mulher: torna-se.” (Simone de Beauvoir)
A dualidade de sentimentos que envolvem o Universo Feminino.

São tantos os sentimentos em busca da identidade feminina, cujos contratempos das emoções transbordadas vão do êxtase secreto à cólera explícita...

Esse blog é um espaço aberto acerca de relatos e desabafos relativos as alegrias e tristezas, felicidades e angústias... Sempre objetivando a solidariedade e ajuda ao próximo.

domingo, 24 de abril de 2011

A Mulher Desiludida

"Aconteceu. Aconteceu logo a mim.   


Pois bem, sim! Isto me aconteceu. É normal. Devo persuadir-me e jugular essa cólera que me sacudiu durante o dia inteiro, ontem. Maurice me mentiu, sim. Isto também é normal. Poderia prosseguir, em vez de me falar. Mesmo tardiamente, devo ser-lhe grata pela franqueza. 

Sábado, eu acabei por adormecer. De vez em quando estendia a mão para o leito gêmeo. a coberta estava estendida. (Gosto de adormecer antes dele, enquanto trabalha em seu gabinete. Através dos sonhos escuto escorrer a água, sinto um ligeiro odor de água-de-colônia, estendo a mão, seu corpo incha as cobertas e mergulho em beatitude.) A porta de entrada bateu violentamente. 

Eu gritei: "Maurice!" eram três horas da manhã. Eles não estiveram trabalhando até três horas. Beberam e conversaram. Eu me levantei da cama:
— a que horas chegou? De onde vem?
Ele sentou-se numa poltrona. Tinha na mão um copo de uísque.
— são três horas, eu sei.
— Colette está doente, eu morro de apreensão e você chega em casa às três horas. Você não trabalhou até três horas.
— Colette piorou? 

Ergueu os ombros. Evidentemente. Eu conhecia sua resposta: bonita, brilhante, atraente. O tipo da aventura inconseqüente e que lisonjeia um homem. Tinha necessidade de lisonjas?

Sorriu-me:
— estou contente por ter-me interrogado. Detestava ter de mentir.
— desde quando você me mente?

Ele hesitou, apenas:
— eu lhe menti em Mougins. E depois de minha volta.
Fazia cinco semanas. Pensaria em Mougins?
— deitou com ela quando ficou sozinho em paris?
— sim.
— você a vê muito?
— oh! Não! Bem sabe que eu trabalho...

Pedi detalhes. Duas noites e uma tarde depois de sua volta, eu acho que é demais.
— por que não me contou logo de uma vez?
Olhou-me timidamente e disse com pesar na voz:
— você disse que morreria de desgosto. ..
— isso a gente diz.. .

Subitamente, tive vontade de chorar: o mais triste é que não morrerei. Através de brumas azuis nós olhávamos a áfrica, ao longe, as palavras que pronunciávamos não passavam de palavras... Atirei-me para trás. O golpe me estarrecia. O estupor esvaziava-me a cabeça. "vamos dormir", eu disse. Precisava de um prazo para compreender o que me acontecia.

Bem cedo a cólera me acordou. Como tinha um ar inocente, com os cabelos emaranhados sobre a fronte rejuvenescida pelo sono! (no mês de agosto, durante minha ausência, ela acordara ao lado dele. Eu não podia acreditar! Por que fui com Colette para a serra? Ela não fazia tanta questão e fui eu que insisti.) Mentiu-me durante cinco semanas! "esta noite demos um grande passo adiante." e voltava da casa de Noellie. Tenho vontade de sacudi-lo, de insultá-lo, de gritar. Dominei-me. Deixei um bilhete em meu travesseiro: "até a noite" — certa de que minha ausência o atingiria mais que reprimendas. À ausência não se pode responder. Caminhei ao acaso, nas ruas, obcecada por estas palavras: "ele me enganou!" visualizava imagens: o olhar, o sorriso de Maurice para Noellie. Afastava-as. Ele não a olha como a mim. Eu não queria sofrer, eu não sofreria mas o rancor me sufocava: "ele me enganou!"

— Dizia: "morrerei de tristeza", sim mas era ele que me forçava a dizer. Fora mais ardoroso do que eu na conclusão de nosso pacto: nada de compromisso, nada de licença. Rodávamos pela estrada de Saint-Bertrand-De-Comminges e ele insistia: "eu lhe bastarei a vida inteira?" Irritou-se porque minha resposta pareceu-lhe não muito inflamada (mas que reconciliação no velho albergue, com o perfume das madressilvas entrando pela janela! Foi há vinte anos: era ontem). Ele me bastou, só vivi para ele. Ele, por um capricho, traiu nosso juramento! Dizia a mim mesma: exigirei que rompa, imediatamente... Estive em casa de Colette, ocupei-me com ela o dia inteiro, mas interiormente, eu fervia. Voltei para o apartamento, esgotada. "vou exigir que rompa."

Mas que significa a palavra "exigência" após uma vida inteira de amor e compreensão? Nunca pedi nada que não desejasse também para ele.

Tomou-me em seus braços com um ar um pouco perdido. Tinha telefonado muitas vezes para Colette e ninguém atendera (para que ela não fosse molestada eu desligara a campainha). Estava louco de inquietação.

— de todo o jeito, você não pensava que eu me matasse?
— imaginei tudo.
Sua ansiedade me tocou e eu o escutei sem me tornar hostil.
— está certo, errou em mentir, mas é preciso que eu compreenda; a primeira hesitação arrasta para outras mentiras: não se ousa confessar porque isto implica revelar que se escondeu a verdade. O obstáculo ainda é mais intransponível para pessoas que, como nós, prezam tanto a sinceridade. (eu reconheço: encarniçadamente, eu mentiria para esconder uma mentira.) Nunca a suportei. As primeiras mentiras de Lucienne e Colette me desolaram. Custei a admitir que todas as crianças mentem para suas mães. Não comigo! Não sou nem mãe nem mulher a quem se minta. Orgulho imbecil. Todas as mulheres acreditam-se singulares, todas pensam que determinadas coisas não lhes podem acontecer e todas se enganam. Refleti bastante, hoje. (é uma sorte que Lucienne esteja na América. Teria que representar para ela e ela não me deixaria em paz.) Fui falar com Isabelle. Ela me ajudou como sempre. Tinha medo que não me compreendesse por que ela e Charles exigem liberdade, e não fidelidade, como eu e Maurice.

Mas isso não impediu, me confessou, de ter crises de cóleras contra o marido, nem de se sentir, às vezes, insegura. Faz cinco anos, acreditou que ele ia deixá-la. Aconselhou-me paciência. Ela estima bastante Maurice. Acha natural que ele tenha querido uma aventura, desculpável que me tenha, anteriormente, escondido. Certamente, ele se cansará bem cedo. O que dá sabor a esse gênero de coisas é a novidade. O tempo trabalha contra Noellie. O prestígio que possa ter aos olhos de Maurice se desvanecerá. Apenas, se quero que nosso amor saia indene dessa prova, é necessário que não represente de vítima nem de megera. "seja compreensiva e alegre, sobretudo seja amiga" — disse. Foi assim que, finalmente, ela reconquistou Charles. A paciência não e minha virtude principal. Mas devo esforçar-me. E não somente por tática mas por ética. Tive, exatamente, a vida que desejei: devo merecer esse privilégio. Se baqueio no primeiro golpe, tudo o que penso de mim é ilusório. Puxei por papai: sou intransigente. Maurice estima que assim seja, mas contudo, devo adaptar-me e compreender os outros. Isabelle tem razão: é normal que um homem tenha uma aventura após vinte e dois anos de casado. Se não o admitisse, eu é que seria anormal — infantil, em suma.

Deixando Isabelle, não tinha nenhuma vontade de ver Marguerite. Ela me escrevera uma cartinha comovente, não poderia decepcioná-la. Tristeza desse salão de visitas, desses rostos de adolescentes oprimidas! Mostrou-me desenhos nada maus. Gostaria de fazer decorações ou, no mínimo, ser vendedora ambulante. Trabalhar, em todo o caso. Repeti-lhe as promessas do juiz. Falei-lhe das diligências que havia feito para obter a autorização de sair aos domingos com ela. Tem confiança em mim e me estima bastante, será paciente mas não por tempo indefinido. Esta noite saio com Maurice. Conselhos de Isabelle e da correspondência sentimental: para retomar seu marido, seja alegre, elegante, saiam juntos, sozinhos. Não tenho que retomá-lo: não o perdi. Mas tenho ainda muitas perguntas a lhe fazer e a conversa será mais calma se jantarmos fora. Não quero, sobretudo, que pareça uma prestação de contas.

Um detalhe bobo me aborrece: por que ele tinha um copo de uísque na mão? Eu chamei: Maurice! Estando acordada às três da manhã, adivinhou que eu ia interrogá-lo. De ordinário, não bate com tanto estrondo a porta de entrada."

Simone de Beauvoir, in A Mulher Desiludida

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